O principal alvo de
análise na obra de Guimarães Rosa envereda-se por caminhos que nos levam muitas
vezes a crer que o bem é o mal e o mal é o bem.
E quando nos questionamos a
respeito deste enveredamento de sentimentos no decorrer da história, pensamos
que talvez não tenha sido mero acaso o autor ter intitulado a história de
“Grande Sertão: Veredas”.
Antes de adentrarmos no tema
principal de nossa pesquisa, gostaríamos de falar um pouco mais sobre alguns
aspectos desta grande obra brasileira.
A linguagem utilizada na obra é
de uma originalidade singular e os padrões de escrita são diferenciados e
tornam a leitura mais difícil.
Os gêneros literários são
complicados de serem encontrados, pois além de ser uma obra longa está disposta
sem a ordem disposta em capítulos que servem para ordenar, e neste caso para identificar o tempo por
exemplo, o que pode ser feito é separar alguns fatos mais importantes,
marcantes no enredo.
Ocorre um diálogo entre o
personagem Riobaldo e o interlocutor não manifestado diretamente de forma que
só é possível a identificação pelos comentários do próprio Riobaldo.
Ao olharmos para este diálogo na
obra cabe citar a seguinte fala de Backthin:
“O romance
caracteriza-se pela consciência do dialogismo, pelo trabalho sistemático com o
jogo de vozes simultâneas num mesmo enunciado.”
Podemos considerar o texto de
Guimarães Rosa anti-aristotélico por tratar-se
de uma descrição variada de situações as quais o sertanejo expressa uma
ignorância da realidade, além de ser um local palpérrimo que é o sertão,
tratando de uma deformação presente no Brasil.
E mais uma vez cabe citar uma
fala do autor russo Backthin:
“A poética de
Aristóteles, bem como as outras, apesar de todas as diferenças e nuances
expressam as mesmas forças centrípetas da vida social, linguística e
ideológica, servem a mesma tarefa de
centralização e unificação das línguas européias”.
Para cada tempo, cultura e
espaço defende-se uma determinada ideologia e que a intenção sempre consiste a
mesma que é manter o seu poder sobre os outros.
Esta obra tem uma característica
polissêmica de muita importância, pois é a partir deste ponto que buscamos os
vários sentidos e significados que podem vir a ser encontrados e com isso
tomarmos nossas próprias conclusões.
O autor Antonio
Candido fala a respeito da obra Grande Sertão: Veredas como sendo um “...desses
raros momentos em que a nossa realidade particular brasileira se transforma em
substância universal.” (CANDIDO,2002, p.192)
Refere-se à
Guimarães Rosa com tanto entusiasmo porque na obra são consagradas questões universais que afligem o ser humano,
fazendo-o refletir sobre questões existenciais como os limites entre o bem e o
mal e Deus e o diabo.
Para explicarmos melhor esta
questão, basta percebermos a ligação que as pessoas fazem de figuras míticas
com sentimentos, por exemplo o bem representado por Deus e o mal pelo Diabo.
A própria palavra diabo vem da
raiz latina diavolo que quer dizer aquele que se divide em dois.
Partindo desta origem dicotômica
o Diabo pode representar tanto o mal quanto o bem, sendo que o mal ou o bem ora
representados irá depender da visão de cada um.
Sob o domínio das sombras eclode
um diálogo interno dentro das pessoas que as partem ao meio, fazendo com que
elas fiquem divididas, jogadas de um lado para o outro em meio a uma avalanche
de secura do sertão e dentro de si mesmas.
O enredo de Guimarães Rosa
coloca dúvidas o tempo todo a este respeito e mostra situações em que aquele
que comete crimes pode ser ao mesmo tempo bom e mau.
Tais denominações representadas
por Deus e o Diabo não vieram do nada.
O drama descrito na bíblia como
a queda dos anjos, quando Satanás é jogado no abismo e sofre como um cão pela
perda do amor de Deus e da felicidade divina, acontece no decorrer do contexto
da obra de Guimarães: por um momento o mal toma conta da alma do personagem,
afastando-o da bondade, da alegria, isto é quando se afastavam de Deus que é
sinônimo de bem no enredo, aproxima-se do diabo sinônimo do mal, jogando-os num
mundo de conflitos e sofrimento.
Temos que nos lembrar que a
literatura brasileira para se constituir terá sempre um sentido ideológico
europeu, portanto sempre existirá uma influência estrangeira muito forte.
Mas em dado momento a nossa
literatura adquiriu consciência da realidade, ou seja da circunstância de ser
algo diverso da portuguesa, depois da independência; e isto ocorreu a
princípio, mais de um desejo ou ato consciente da vontade, que da verificação
objetiva de um estado das coisas.
Neste sentido Antonio Candido
fez a seguinte colocação:
“O Brasil tem uma
natureza e uma população diferentes das de Portugal, e acaba de mostrar que
possui também, uma organização política diferente; a literatura é relativa ao
meio físico e humano; logo o Brasil tem uma literatura própria, diferente da de
Portugal.”(p.177)
A partir deste momento é que se
trouxe a grande hipótese de trabalho dos românticos que a elegeram como uma
espécie de dogma: “ser bom
literariamente, significava ser brasileiro; ser brasileiro significava incluir
nas obras o que havia de específico no país, notadamente a paisagem.” – sabiamente
dita quanto à estrutura e função histórica da Literatura. (CANDIDO.p.178)
Logicamente que Guimarães
adquiriu esta consciência de “ser brasileiro” haja vista que o espaço usado em
sua obra é o sertão, e nada mais nacional do que mostrar a parte sofrida do seu
país em conjunto com todas as características de dor e sofrimento de viver em
terras secas e esquecidas pelo Estado e por Deus, diga-se de passagem.
O grande pesquisador e teórico
literário Antonio Candido enfatiza que “do
ponto de vista metodológico” pode-se concluir que o estudo da função
histórico-literária de uma obra só é adquirida em pleno significado quando
referida intimamente à sua estrutura.
No entanto, ainda que não esteja
aparente, sempre haverá algo implícito na obra que traga uma sombra europeia, e
isso trata de um parâmetro histórico dos povos.
Apesar de o autor demonstrar as
mazelas sofridas pelo sertanejo no espaço sertão, ao estudarmos com mais
profundidade os detalhes ocultos no discorrer da narração perceberemos aspectos
históricos e culturais advindos de costumes estrangeiros muito fortes, como nas
diversas passagens da obra em que se
clama por Deus e se teme o Diabo.
Ao questionarmos o surgimento de
tais denominações míticas, adentramos numa época da história que a igreja
católica enquanto detentora do poder impunha valores e padrões religiosos,
julgando de acordo como os próprios interesses o que era considerado bem e o
que era considerado mal, sem aceitação de demais opiniões, inclusive o período
conhecido como “idade das trevas” o qual muitos inocentes julgados pela santa
inquisição como praticantes de bruxaria, ora surgida do mal e filhos do Demônio
morreram injustamente.
Logo no início da obra temos o
seguinte trecho:
“Tiros que o senhor
ouviu foram de briga de homem não, Deus esteja.” (p.23)
A presença de Deus é invocada pelo
sertanejo para trazer-lhe uma espécie de segurança em meio à violência daquele lugar
e para aquele homem, talvez seja o único alento que pode ter.
Segue o trecho:
“Como não ter Deus?Com
Deus existindo tudo dá esperança: sempre um milagre é possível, o mundo se
resolve.” (p.76)
O sertão é um lugar por si só
ruim, pois além das terras secas e inférteis é permeado por criminosos que
fazem o que querem e escrevem sua própria lei: a lei do mais forte.
Há um trecho da obra que diz o
seguinte:
“...sertão se divulga:
é onde os pastos carecem de fechos, onde um pode torar dez, quinze léguas sem
topar com casa de morador; e onde criminoso vive seu cristo-jesus, arredado do
arrocho de autoridade.” (p.24)
A situação no local pela secura
do solo e do povo que ali habita chega num ponto que pode ser facilmente
comparada ao inferno. Neste sentido o mal está certamente colocado.
O aspecto percebido nesta
situação e em outras que serão citadas
mais adiante é a visão do mal para quem está olhando de fora e a visão daquele
que está praticando o ato: são distintas e conflitantes.
Oras para o criminoso que está a
praticar o delito, sabe-se lá o motivo do comportamento que o levou a fazê-lo?
E tratando-se das condições de sobrevida do sertão, claramente que não é das
melhores. Neste caso a ação praticada pelo infrator é má até que ponto?
Segue mais um trecho:
“Quase todo mais grave
criminoso feroz, sempre é muito bom marido, bom filho, bom pai, e é bom
amigo-de-seus-amigos! Sei desses. Só que tem os depois – e Deus, junto.”(p.p.
27 e 28)
O duelo existente entre o bem e
o mal presentes e gerando diversas concepções afinal mesmo o indivíduo sendo
criminoso é visto pelos entes queridos e amigos como um bom homem e portanto
tem consigo a presença de Deus.
É uma visão perturbadora de
imaginar, mas a realidade é bem esta demonstrada neste trecho da obra, antemão
lembrando-nos de que valores comportamentais são impostos na sociedade e
parâmetros sociais que denominam o que é crime ou não dialogam com o que é bem
e o que é mal.
Nossa vida é violentada porque
somos parte de uma sociedade panóptica e ao que nos parece nada podemos fazer há não ser sofrer
por termos a consciência de que somos vigiados pelo sistema governamental o
tempo todo e este mesmo sistema é aquele que cria normas e leis nos obrigando a
segui-los.
O estado democrático de direito
não passa de uma utopia criada pelo sistema para nos manipular.
O livro de Guimarães Rosa veio
para denunciar de maneira categórica as questões do sertão e demais violências
sofridas pelo povo brasileiro que vive nesta parte do Brasil, mas pelas
situações verídicas, sabiamente colocadas pelo autor no enredo da história o
estado democrático de direito não se faz valer naquelas terras. As leis são
feitas pelos mais fortes da região bem como a punição e tudo mais que caminha
paralelamente com as questões do bem e do mal as quais tratamos nesta análise.
E mais do que isso, para o autor
da ação criminosa que “vive seu cristo-jesus” sem a coerção de autoridade
competente no local quem de fato pratica o bem e o mal perante a situação
vivida no sertão?
É expressada tanta dor por parte
do sertanejo local pela vida difícil que têm que o leva a questionar profundamente
a vida e a morte.
“Ah, medo tenho não é
de ver a morte, mas de ver nascimento. Medo, mistério.” (p.76)
Segue outro trecho muito
importante e que abre muitas indagações:
“O que não é Deus, é
estado do demônio. Deus existe mesmo quando não há. Mas o demônio não precisa
de existir para haver – a gente sabendo que ele não existe, aí é que ele toma
conta de tudo.” (p.76)
A ideia do filósofo Tomas Hobbes
quando diz que “o homem é lobo do homem” cabe muito bem na fala acima citada.
Entende-se que o mal
representado pelo figura do diabo está ali o tempo todo por natureza da própria
situação das pessoas e do lugar e que mesmo não sendo visto, sabe-se da sua
presença.
Mas o interessante é mesmo a
analogia feita quando ele diz “o que não é Deus, é estado do demônio” que ao
nosso ver expressa perfeitamente o paralelo entre o bem e o mal.
Também temos um
grande filósofo alemão chamado Friederich Nieztche que tece diversas ideias
acerca desta questão.
Em sua obra
“Assim falou Zaratustra” ele questiona o ócio de Deus como sendo o próprio
diabo: “Teologicamente falando — escutai, não é fato comum que eu adote a voz
do teólogo! — foi deus mesmo que, acabado seu trabalho e assumida a forma de
serpente pôs-se ao pé da ciência— assim descansou do cansaço de
ser Deus. Fez bem... O diabo nada mais é que o ócio de deus a cada sete dias...”
Nieztche propôs
o conceito do niilismo libertador. [1]
Além disso ao
contrário do que se diz por aí o autor não matou Deus, apenas retratou a
religião como sendo manipuladora e reguladora das normas da vida dos indivíduos
e propôs uma ética niilista vinculada ao
que posteriormente seria a junção de uma
teoria chamada de práxis.[2]
A verdade Nieztche
é cético e toda a perspectiva dos seus escritos conflita a existência de Deus e
Diabo, sendo tudo explicado através da ciência.
Em consonância
com as ideias do filósofo alemão e temos o comunista Karl Marx.
No momento em
que a ética tornou-se relativa e sofreu interferência dos aspectos humanos
surgiu a necessidade de uma teorização e racionalidade.
Ao estudar a
realidade demonstra-se as contradições do sistema capitalista e seguindo o que
prega esta frase de Marx, mais uma vez podemos dialogar com os sentimentos
opostos bem e mal que nada mais são do que imposições comportamentais
nomenclaturadas pelo poder e que faz uso
do seu poderio para nos controlar e punir.
Uma frase dita
pelo comunista e que de fato é verídica é que “uma revolução só acontece quando
os indivíduos vivem a contradição”.
E mais uma vez
nos deparamos com as mais diversas contradições ocorridas na obra de Guimarães
quando a superstição que gira em torno da existência do demônio e ao mesmo
tempo negar que ele exista, segue o trecho:
“Tem diabo nenhum. Nem espírito. Nunca vi.” (p.26)
A finalização da história concretiza-se
com a seguinte fala:
“O diabo não há! É o que eu digo, se for...Existe é homem humano.”
(p.624)
Ao
terminar sua obra com esta passagem ficou clara a ideia de que o homem é o
próprio mau em sua essência e que portanto a figura diabólica não passou de uma
representação utilizada para amedrontar os mais ignorantes.
“Nada mais importante para chamar atenção sobre uma verdade do que exagerá-la.”(CANDIDO.p.13)
Guimarães Rosa ao
escrever o “Grande Sertão: Veredas” seguiu à risca esta fala de Antonio
Candido, pois além de denunciar uma realidade triste e esquecida pelo país,
exagerou nos detalhes das questões bem e mal representadas por Deus e o diabo,
e muitas vezes até mesmo por figuras animalescas, sempre dando ênfase no
clamor, crença e agonia do homem do início ao fim da obra.
E
retomar o conceito negativo sobre o ser humano defendido pelo filósofo Hobbes
quando diz que o “homem é mau por natureza”.
O
sertão dentro da obra é a própria representação do mundo em paralelo com o bem
e o mal: caótico e submerso no oceano profundo do esquecimento.
Pour Anna
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