segunda-feira, 17 de junho de 2013

Análise do bem e do mal na obra literária Grande Sertão: Veredas




O principal alvo de análise na obra de Guimarães Rosa envereda-se por caminhos que nos levam muitas vezes a crer que o bem é o mal e o mal é o bem.
E quando nos questionamos a respeito deste enveredamento de sentimentos no decorrer da história, pensamos que talvez não tenha sido mero acaso o autor ter intitulado a história de “Grande Sertão: Veredas”.
Antes de adentrarmos no tema principal de nossa pesquisa, gostaríamos de falar um pouco mais sobre alguns aspectos desta grande obra brasileira.
A linguagem utilizada na obra é de uma originalidade singular e os padrões de escrita são diferenciados e tornam a leitura mais difícil.
Os gêneros literários são complicados de serem encontrados, pois além de ser uma obra longa está disposta sem a ordem disposta em capítulos que servem para ordenar,  e neste caso para identificar o tempo por exemplo, o que pode ser feito é separar alguns fatos mais importantes, marcantes no enredo.
Ocorre um diálogo entre o personagem Riobaldo e o interlocutor não manifestado diretamente de forma que só é possível a identificação pelos comentários do próprio Riobaldo.
Ao olharmos para este diálogo na obra cabe citar a seguinte fala de Backthin:
“O romance caracteriza-se pela consciência do dialogismo, pelo trabalho sistemático com o jogo de vozes simultâneas num mesmo enunciado.”
Podemos considerar o texto de Guimarães Rosa anti-aristotélico por tratar-se  de uma descrição variada de situações as quais o sertanejo expressa uma ignorância da realidade, além de ser um local palpérrimo que é o sertão, tratando de uma deformação presente no Brasil.
E mais uma vez cabe citar uma fala do autor russo Backthin:
“A poética de Aristóteles, bem como as outras, apesar de todas as diferenças e nuances expressam as mesmas forças centrípetas da vida social, linguística e ideológica, servem  a mesma tarefa de centralização e unificação das línguas européias”.
Para cada tempo, cultura e espaço defende-se uma determinada ideologia e que a intenção sempre consiste a mesma que é manter o seu poder sobre os outros.
Esta obra tem uma característica polissêmica de muita importância, pois é a partir deste ponto que buscamos os vários sentidos e significados que podem vir a ser encontrados e com isso tomarmos nossas próprias conclusões.
O autor Antonio Candido fala a respeito da obra Grande Sertão: Veredas como sendo um “...desses raros momentos em que a nossa realidade particular brasileira se transforma em substância universal.” (CANDIDO,2002, p.192)

Refere-se à Guimarães Rosa com tanto entusiasmo porque na obra são consagradas  questões universais que afligem o ser humano, fazendo-o refletir sobre questões existenciais como os limites entre o bem e o mal e Deus e o diabo.
Para explicarmos melhor esta questão, basta percebermos a ligação que as pessoas fazem de figuras míticas com sentimentos, por exemplo o bem representado por Deus e o mal pelo Diabo.
A própria palavra diabo vem da raiz latina diavolo que quer dizer aquele que se divide em dois.
Partindo desta origem dicotômica o Diabo pode representar tanto o mal quanto o bem, sendo que o mal ou o bem ora representados irá depender da visão de cada um.
Sob o domínio das sombras eclode um diálogo interno dentro das pessoas que as partem ao meio, fazendo com que elas fiquem divididas, jogadas de um lado para o outro em meio a uma avalanche de secura do sertão e dentro de si mesmas.
O enredo de Guimarães Rosa coloca dúvidas o tempo todo a este respeito e mostra situações em que aquele que comete crimes pode ser ao mesmo tempo bom e mau.
Tais denominações representadas por Deus e o Diabo não vieram do nada.
O drama descrito na bíblia como a queda dos anjos, quando Satanás é jogado no abismo e sofre como um cão pela perda do amor de Deus e da felicidade divina, acontece no decorrer do contexto da obra de Guimarães: por um momento o mal toma conta da alma do personagem, afastando-o da bondade, da alegria, isto é quando se afastavam de Deus que é sinônimo de bem no enredo, aproxima-se do diabo sinônimo do mal, jogando-os num mundo de conflitos e sofrimento.
Temos que nos lembrar que a literatura brasileira para se constituir terá sempre um sentido ideológico europeu, portanto sempre existirá uma influência estrangeira muito forte.
Mas em dado momento a nossa literatura adquiriu consciência da realidade, ou seja da circunstância de ser algo diverso da portuguesa, depois da independência; e isto ocorreu a princípio, mais de um desejo ou ato consciente da vontade, que da verificação objetiva de um estado das coisas.
Neste sentido Antonio Candido fez a seguinte colocação:
“O Brasil tem uma natureza e uma população diferentes das de Portugal, e acaba de mostrar que possui também, uma organização política diferente; a literatura é relativa ao meio físico e humano; logo o Brasil tem uma literatura própria, diferente da de Portugal.”(p.177)
A partir deste momento é que se trouxe a grande hipótese de trabalho dos românticos que a elegeram como uma espécie de dogma: “ser bom literariamente, significava ser brasileiro; ser brasileiro significava incluir nas obras o que havia de específico no país, notadamente a paisagem.” – sabiamente dita quanto à estrutura e função histórica da Literatura. (CANDIDO.p.178)
Logicamente que Guimarães adquiriu esta consciência de “ser brasileiro” haja vista que o espaço usado em sua obra é o sertão, e nada mais nacional do que mostrar a parte sofrida do seu país em conjunto com todas as características de dor e sofrimento de viver em terras secas e esquecidas pelo Estado e por Deus, diga-se de passagem.
O grande pesquisador e teórico literário Antonio Candido enfatiza que “do ponto de vista metodológico” pode-se concluir que o estudo da função histórico-literária de uma obra só é adquirida em pleno significado quando referida intimamente à sua estrutura.
No entanto, ainda que não esteja aparente, sempre haverá algo implícito na obra que traga uma sombra europeia, e isso trata de um parâmetro histórico dos povos.
Apesar de o autor demonstrar as mazelas sofridas pelo sertanejo no espaço sertão, ao estudarmos com mais profundidade os detalhes ocultos no discorrer da narração perceberemos aspectos históricos e culturais advindos de costumes estrangeiros muito fortes, como nas diversas passagens  da obra em que se clama por Deus e se teme o Diabo.
Ao questionarmos o surgimento de tais denominações míticas, adentramos numa época da história que a igreja católica enquanto detentora do poder impunha valores e padrões religiosos, julgando de acordo como os próprios interesses o que era considerado bem e o que era considerado mal, sem aceitação de demais opiniões, inclusive o período conhecido como “idade das trevas” o qual muitos inocentes julgados pela santa inquisição como praticantes de bruxaria, ora surgida do mal e filhos do Demônio morreram injustamente.
Logo no início da obra temos o seguinte trecho:
“Tiros que o senhor ouviu foram de briga de homem não, Deus esteja.” (p.23)
A presença de Deus é invocada pelo sertanejo para trazer-lhe uma espécie de segurança em meio à violência daquele lugar e para aquele homem, talvez seja o único alento que pode ter.
Segue o trecho:
“Como não ter Deus?Com Deus existindo tudo dá esperança: sempre um milagre é possível, o mundo se resolve.” (p.76)
O sertão é um lugar por si só ruim, pois além das terras secas e inférteis é permeado por criminosos que fazem o que querem e escrevem sua própria lei: a lei do mais forte.
Há um trecho da obra que diz o seguinte:
“...sertão se divulga: é onde os pastos carecem de fechos, onde um pode torar dez, quinze léguas sem topar com casa de morador; e onde criminoso vive seu cristo-jesus, arredado do arrocho de autoridade.” (p.24)
A situação no local pela secura do solo e do povo que ali habita chega num ponto que pode ser facilmente comparada ao inferno. Neste sentido o mal está certamente colocado.
O aspecto percebido nesta situação  e em outras que serão citadas mais adiante é a visão do mal para quem está olhando de fora e a visão daquele que está praticando o ato: são distintas e conflitantes.
Oras para o criminoso que está a praticar o delito, sabe-se lá o motivo do comportamento que o levou a fazê-lo? E tratando-se das condições de sobrevida do sertão, claramente que não é das melhores. Neste caso a ação praticada pelo infrator é má até que ponto?
Segue mais um trecho:
“Quase todo mais grave criminoso feroz, sempre é muito bom marido, bom filho, bom pai, e é bom amigo-de-seus-amigos! Sei desses. Só que tem os depois – e Deus, junto.”(p.p. 27 e 28)
O duelo existente entre o bem e o mal presentes e gerando diversas concepções afinal mesmo o indivíduo sendo criminoso é visto pelos entes queridos e amigos como um bom homem e portanto tem consigo a presença de Deus.
É uma visão perturbadora de imaginar, mas a realidade é bem esta demonstrada neste trecho da obra, antemão lembrando-nos de que valores comportamentais são impostos na sociedade e parâmetros sociais que denominam o que é crime ou não dialogam com o que é bem e o que é mal.
Nossa vida é violentada porque somos parte de uma sociedade panóptica e ao que nos  parece nada podemos fazer há não ser sofrer por termos a consciência de que somos vigiados pelo sistema governamental o tempo todo e este mesmo sistema é aquele que cria normas e leis nos obrigando a segui-los.
O estado democrático de direito não passa de uma utopia criada pelo sistema para nos manipular.
O livro de Guimarães Rosa veio para denunciar de maneira categórica as questões do sertão e demais violências sofridas pelo povo brasileiro que vive nesta parte do Brasil, mas pelas situações verídicas, sabiamente colocadas pelo autor no enredo da história o estado democrático de direito não se faz valer naquelas terras. As leis são feitas pelos mais fortes da região bem como a punição e tudo mais que caminha paralelamente com as questões do bem e do mal as quais tratamos nesta análise.
E mais do que isso, para o autor da ação criminosa que “vive seu cristo-jesus” sem a coerção de autoridade competente no local quem de fato pratica o bem e o mal perante a situação vivida no sertão?
É expressada tanta dor por parte do sertanejo local pela vida difícil que têm que o leva a questionar profundamente a vida e a morte.
“Ah, medo tenho não é de ver a morte, mas de ver nascimento. Medo, mistério.” (p.76)
Segue outro trecho muito importante e que abre muitas indagações:
“O que não é Deus, é estado do demônio. Deus existe mesmo quando não há. Mas o demônio não precisa de existir para haver – a gente sabendo que ele não existe, aí é que ele toma conta de tudo.” (p.76)
A ideia do filósofo Tomas Hobbes quando diz que “o homem é lobo do homem” cabe muito bem na fala acima citada.
Entende-se que o mal representado pelo figura do diabo está ali o tempo todo por natureza da própria situação das pessoas e do lugar e que mesmo não sendo visto, sabe-se da sua presença.
Mas o interessante é mesmo a analogia feita quando ele diz “o que não é Deus, é estado do demônio” que ao nosso ver expressa perfeitamente o paralelo entre o bem e o mal.
Também temos um grande filósofo alemão chamado Friederich Nieztche que tece diversas ideias acerca desta questão.
Em sua obra “Assim falou Zaratustra” ele questiona o ócio de Deus como sendo o próprio diabo: “Teologicamente falando — escutai, não é fato comum que eu adote a voz do teólogo! — foi deus mesmo que, acabado seu trabalho e assumida a forma de serpente pôs-se ao pé da ciência— assim descansou do cansaço de ser Deus. Fez bem... O diabo nada mais é que o ócio de deus a cada sete dias...”

Nieztche propôs o conceito do niilismo libertador. [1]
Além disso ao contrário do que se diz por aí o autor não matou Deus, apenas retratou a religião como sendo manipuladora e reguladora das normas da vida dos indivíduos e  propôs uma ética niilista vinculada ao que posteriormente seria a junção de uma  teoria chamada de práxis.[2]
A verdade Nieztche é cético e toda a perspectiva dos seus escritos conflita a existência de Deus e Diabo, sendo tudo explicado através da ciência.
Em consonância com as ideias do filósofo alemão e temos o comunista Karl Marx.
No momento em que a ética tornou-se relativa e sofreu interferência dos aspectos humanos surgiu a necessidade de uma teorização e racionalidade.
Ao estudar a realidade demonstra-se as contradições do sistema capitalista e seguindo o que prega esta frase de Marx, mais uma vez podemos dialogar com os sentimentos opostos bem e mal que nada mais são do que imposições comportamentais nomenclaturadas pelo poder  e que faz uso do seu poderio para nos controlar e punir.
Uma frase dita pelo comunista e que de fato é verídica é que “uma revolução só acontece quando os indivíduos vivem a contradição”.
E mais uma vez nos deparamos com as mais diversas contradições ocorridas na obra de Guimarães quando a superstição que gira em torno da existência do demônio e ao mesmo tempo negar que ele exista, segue o trecho:
“Tem diabo nenhum. Nem espírito. Nunca vi.” (p.26)
A finalização da história concretiza-se com a seguinte fala:
“O diabo não há! É o que eu digo, se for...Existe é homem humano.” (p.624)
Ao terminar sua obra com esta passagem ficou clara a ideia de que o homem é o próprio mau em sua essência e que portanto a figura diabólica não passou de uma representação utilizada para amedrontar os mais ignorantes.
“Nada mais importante para chamar atenção sobre uma verdade do que exagerá-la.”(CANDIDO.p.13)
Guimarães Rosa ao escrever o “Grande Sertão: Veredas” seguiu à risca esta fala de Antonio Candido, pois além de denunciar uma realidade triste e esquecida pelo país, exagerou nos detalhes das questões bem e mal representadas por Deus e o diabo, e muitas vezes até mesmo por figuras animalescas, sempre dando ênfase no clamor, crença e agonia do homem do início ao fim da obra.
E retomar o conceito negativo sobre o ser humano defendido pelo filósofo Hobbes quando diz que o “homem é mau por natureza”.
O sertão dentro da obra é a própria representação do mundo em paralelo com o bem e o mal: caótico e submerso no oceano profundo do esquecimento.

Pour Anna



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