quarta-feira, 12 de junho de 2013

A liberdade do pássaro azul




Estava triste e minha tristeza era tanta que não cabia mais ali dentro.
Precisava apenas de uma chance para correr dali e berrava por dentro; ensurdecia com grunidos, gemidos mas ninguém me ouvia, e quando ouvia se encantava acreditando ser um som de alegria.
Todavia apenas a morte eu queria. Mas ninguém sabia  nem eu próprio, pois aprisionado, sabe-se lá há quanto tempo, já não mais sabia o que era de fato liberdade.
Será que ainda sabia voar? Bom acreditava que sim uma vez que fui contemplado por belas penas azuis, mescladas em tom mais claro e escuro, pintinhas pretas esfumaçadas de branco.
Apenas pude mesmo me ver porque ganhei dos meus algozes uma espécie de baguá em formato de espelho, que diziam por aí que espantava o mal olhado e inveja das pessoas, crendices.
Mas o objeto pouco tempo durou, já que meu estresse fez com que eu o bicasse até desmanchá-lo, juntando-o ao jornal molhado e sujo de alpiste no piso mais fundo da gaiola-prisão.
Por vezes aquele ambiente de cárcere, tornava-se insuportável: sujo e mal cheiroso. Dias a dentro e noites à fora,  e quando frio muito frio e calor muito calor.
Nos momentos difíceis de quedas de temperatura, encolhia-me junto à minha companheira, única nas horas angustiantes, mas que também passou a isolar-se de mim.
Falando um pouco dela: periquita amarela, geniosa e dona de si, sempre deixava-me de lado e preferia isolar-se.
Ainda mais quando ganhamos uma nova prisão com um cômodo-caixa de madeira novo.
Isto sim tornou-nos ainda mais distantes, agora sim ela não precisava mais do meu afago, bastava entrar ali na caixinha e pronto, estaria aconchegada e aquecida. Não me deixava nem chegar perto, me esquecia, sentia-me algumas vezes, como um peixe fora d’água, sabe aquele tal de “Beta” que está fadado a viver sozinho?
Pronto passei a me questionar, refletir: o por que da minha existência?
Por que eu não podia bater minhas asas como os pássaros que voavam no céu cinzento, mas que mesmo não sendo céu azul, era o céu...por que?
Por que eu tive que nascer encarceirado? Não sou afinal parte da natureza? Mas que natureza?
Fiquei confuso comigo mesmo e não conseguia encontrar respostas para tantas perguntas.
O que eu era afinal? Por que pensava tanto já que era um pássaro?
Será que era um pássaro, gato, prisioneiro, bichinho de estimação?
Não sabia mesmo. Sabia apenas que de vez em quando me chamavam de “Azuzinho”.
Nossa seria alguma espécie em extinção ou uma forma carinhosa, talvez um código secreto dos humanos? Não sabia ao certo, mas sabia que não estava feliz.
Na verdade nunca estive realmente feliz, nem sabia o que era felicidade
Não conseguia cantarolar mais.
Então amanheceu o dia...que poderia ter sido apenas mais um dia entre tantos outros que se passaram, mas naquela manhã em especial eu consegui ver uma luz.
Será que teria coragem de fazer a travessia?
Então foi raiando o sol e em meio às sombras da cidade grande sob buzinas, sirenes  e fumaça: paisagem do caos que deliciava meus olhinhos todos os dias naquela varanda de apartamento.
Estudava e fazia barulhos para ver se minha companheira saía de sua caixa, talvez se aventurasse comigo. Mas nada, ela apenas ficava ali, indiferente. E só quando precisava me procurava para o nosso namorico de “piolhinho”.
O que é este tal de “piolhinho”? Oras é uma espécie de carinho o qual  um passarinho bica a nuca do outro. É coisa linda de se ver e sentir: o verdadeiro ato de amor.

Me lancei e fui pulando até a portinha estreita. Pronto saí, nada mais tinha a perder. Naquele momento era eu e o mundo lá fora. Nada mais me importava.
Mas de repente eis que fui abocanhado por um gato astuto, que mais parecia um demônio: todo preto e com os olhos em faíscas vermelhas.
O cão ou melhor gato, saltou e me pegou no alto de uma telinha. Fiquei ali como se fosse uma mosca presa na teia, entreguei-me e acreditei que fosse meu fim. Morri.
Não! Fui salvo por um dos meus algozes de dentro da boca do capa preta. Então voei um pouco mais alto e parei na tela de proteção.
Fiquei pensando enquanto olhava para aquele ser humano...
Por alguns minutos pensei em voltar e deixá-lo me prender novamente. Lembrei que conversávamos muitas vezes, inclusive  numa linguagem transmitida por assovios falhos, também de algumas mudanças, alimentação fácil, fotos de família. Ouvia muita música boa, bonita de se ouvir e carinho, pelo menos parecia-me sê-lo.
Mas cai em mim quando percebi, que mesmo com tanta expressão de carinho aquilo tudo não passava de egoísmo humanístico.
Oras eu era mesmo um prisioneiro, um bicho de estimação e portanto, objeto de satisfação e vaidade humana.
Tudo parte de uma utopia ora criada pelo homem e ora por eu mesmo: pássaro azul.
Será que eu fui criado por Deus? Mas que Deus é este que deixa um filho da natureza preso desde que nasceu?
Não sou eu parte da história famosa da Arca de Noé?
Pronto estava na hora, tive que pensar e agir rápido. Nem mesmo calculei e quando a gaiola veio até mim de portas abertas para receber-me, passei pelo buraquinho da tela, e olha só que surpresa: voei e quando percebi que podia fazê-lo, bati ainda com mais força minhas lindas penugens azuis e fui o mais alto que pudi. Não cai e nem esmoreci. Continuei.
Mas será que estava na direção certa? Quando iria parar?
Não sabia ao certo. Mas algo importante e precioso eu tinha consciência: acabara de conquistar a liberdade.
Acreditava jamais encontrá-la, e se na gaiola-cárcere estivesse, não poderia jamais saber se realmente minhas belas asinhas azuis funcionariam.
Vejam só como esta vida nos ensina por caminhos tortuosos e difíceis: um erro de esquecimento, cometido por um dos meus algozes, me fez fugir e encontrar minha vida ou que seja, a morte.
Mas ainda que sinta por pouco tempo a liberdade, já que não sei se sobreviverei nesta selva de pedras, ainda assim, terá valido à pena, porque senti.
E senti que sou pássaro livre, fruto da natureza, e que fui periquito “Azuzinho” preso pelo egoísmo humano.
Enfim se o caminho que escolhi me levou para a vida ou morte, pouco importa. O que vale mesmo é que estou livre. 


(Em memória do periquito azul fugido da varanda de uma apartamento no bairro do Tatuapé em São Paulo – Sinto falta e fico triste pelo ocorrido, mas feliz porque consegui entender o que aconteceu de forma mais profunda e ouvi o clamor do lindo pássaro azul)