Estava triste
e minha tristeza era tanta que não cabia mais ali dentro.
Precisava
apenas de uma chance para correr dali e berrava por dentro; ensurdecia com grunidos,
gemidos mas ninguém me ouvia, e quando ouvia se encantava acreditando ser um som
de alegria.
Todavia apenas
a morte eu queria. Mas ninguém sabia nem
eu próprio, pois aprisionado, sabe-se lá há quanto tempo, já não mais sabia o
que era de fato liberdade.
Será que ainda
sabia voar? Bom acreditava que sim uma vez que fui contemplado por belas penas
azuis, mescladas em tom mais claro e escuro, pintinhas pretas esfumaçadas de
branco.
Apenas pude
mesmo me ver porque ganhei dos meus algozes uma espécie de baguá em formato de
espelho, que diziam por aí que espantava o mal olhado e inveja das pessoas,
crendices.
Mas o objeto pouco
tempo durou, já que meu estresse fez com que eu o bicasse até desmanchá-lo, juntando-o
ao jornal molhado e sujo de alpiste no piso mais fundo da gaiola-prisão.
Por vezes
aquele ambiente de cárcere, tornava-se insuportável: sujo e mal cheiroso. Dias
a dentro e noites à fora, e quando frio
muito frio e calor muito calor.
Nos momentos
difíceis de quedas de temperatura, encolhia-me junto à minha companheira, única
nas horas angustiantes, mas que também passou a isolar-se de mim.
Falando um
pouco dela: periquita amarela, geniosa e dona de si, sempre deixava-me de lado
e preferia isolar-se.
Ainda mais
quando ganhamos uma nova prisão com um cômodo-caixa de madeira novo.
Isto sim tornou-nos
ainda mais distantes, agora sim ela não precisava mais do meu afago, bastava
entrar ali na caixinha e pronto, estaria aconchegada e aquecida. Não me deixava
nem chegar perto, me esquecia, sentia-me algumas vezes, como um peixe fora d’água,
sabe aquele tal de “Beta” que está fadado a viver sozinho?
Pronto passei
a me questionar, refletir: o por que da minha existência?
Por que eu não
podia bater minhas asas como os pássaros que voavam no céu cinzento, mas que
mesmo não sendo céu azul, era o céu...por que?
Por que eu
tive que nascer encarceirado? Não sou afinal parte da natureza? Mas que
natureza?
Fiquei confuso
comigo mesmo e não conseguia encontrar respostas para tantas perguntas.
O que eu era
afinal? Por que pensava tanto já que era um pássaro?
Será que era um
pássaro, gato, prisioneiro, bichinho de estimação?
Não sabia
mesmo. Sabia apenas que de vez em quando me chamavam de “Azuzinho”.
Nossa seria
alguma espécie em extinção ou uma forma carinhosa, talvez um código secreto dos
humanos? Não sabia ao certo, mas sabia que não estava feliz.
Na verdade nunca
estive realmente feliz, nem sabia o que era felicidade
Não conseguia
cantarolar mais.
Então
amanheceu o dia...que poderia ter sido apenas mais um dia entre tantos outros
que se passaram, mas naquela manhã em especial eu consegui ver uma luz.
Será que teria
coragem de fazer a travessia?
Então foi
raiando o sol e em meio às sombras da cidade grande sob buzinas, sirenes e fumaça: paisagem do caos que deliciava meus
olhinhos todos os dias naquela varanda de apartamento.
Estudava e
fazia barulhos para ver se minha companheira saía de sua caixa, talvez se
aventurasse comigo. Mas nada, ela apenas ficava ali, indiferente. E só quando
precisava me procurava para o nosso namorico de “piolhinho”.
O que é este
tal de “piolhinho”? Oras é uma espécie de carinho o qual um passarinho bica a nuca do outro. É coisa
linda de se ver e sentir: o verdadeiro ato de amor.
Me lancei e
fui pulando até a portinha estreita. Pronto saí, nada mais tinha a perder. Naquele
momento era eu e o mundo lá fora. Nada mais me importava.
Mas de repente
eis que fui abocanhado por um gato astuto, que mais parecia um demônio: todo
preto e com os olhos em faíscas vermelhas.
O cão ou
melhor gato, saltou e me pegou no alto de uma telinha. Fiquei ali como se fosse
uma mosca presa na teia, entreguei-me e acreditei que fosse meu fim. Morri.
Não! Fui salvo
por um dos meus algozes de dentro da boca do capa preta. Então voei um pouco
mais alto e parei na tela de proteção.
Fiquei
pensando enquanto olhava para aquele ser humano...
Por alguns minutos
pensei em voltar e deixá-lo me prender novamente. Lembrei que conversávamos
muitas vezes, inclusive numa linguagem transmitida
por assovios falhos, também de algumas mudanças, alimentação fácil, fotos de
família. Ouvia muita música boa, bonita de se ouvir e carinho, pelo menos
parecia-me sê-lo.
Mas cai em mim
quando percebi, que mesmo com tanta expressão de carinho aquilo tudo não
passava de egoísmo humanístico.
Oras
eu era mesmo um prisioneiro, um bicho de estimação e portanto, objeto de
satisfação e vaidade humana.
Tudo
parte de uma utopia ora criada pelo homem e ora por eu mesmo: pássaro azul.
Será
que eu fui criado por Deus? Mas que Deus é este que deixa um filho da natureza
preso desde que nasceu?
Não
sou eu parte da história famosa da Arca de Noé?
Pronto
estava na hora, tive que pensar e agir rápido. Nem mesmo calculei e quando a
gaiola veio até mim de portas abertas para receber-me, passei pelo buraquinho da
tela, e olha só que surpresa: voei e quando percebi que podia fazê-lo, bati ainda
com mais força minhas lindas penugens azuis e fui o mais alto que pudi. Não cai
e nem esmoreci. Continuei.
Mas
será que estava na direção certa? Quando iria parar?
Não
sabia ao certo. Mas algo importante e precioso eu tinha consciência: acabara de
conquistar a liberdade.
Acreditava
jamais encontrá-la, e se na gaiola-cárcere estivesse, não poderia jamais saber
se realmente minhas belas asinhas azuis funcionariam.
Vejam
só como esta vida nos ensina por caminhos tortuosos e difíceis: um erro de
esquecimento, cometido por um dos meus algozes, me fez fugir e encontrar minha vida
ou que seja, a morte.
Mas
ainda que sinta por pouco tempo a liberdade, já que não sei se sobreviverei
nesta selva de pedras, ainda assim, terá valido à pena, porque senti.
E
senti que sou pássaro livre, fruto da natureza, e que fui periquito “Azuzinho”
preso pelo egoísmo humano.
Enfim
se o caminho que escolhi me levou para a vida ou morte, pouco importa. O que
vale mesmo é que estou livre.
(Em memória do
periquito azul fugido da varanda de uma apartamento no bairro do Tatuapé em São
Paulo – Sinto falta e fico triste pelo ocorrido, mas feliz porque consegui
entender o que aconteceu de forma mais profunda e ouvi o clamor do lindo
pássaro azul)