Francisco Viana
De São Paulo
De São Paulo
Existem tempos de retornar à tragédia para desvendar a farsa. O filósofo Slavoj Zizek escreveu Primeiro como tragédia, depois como farsa,
que acaba de chegar às livrarias, justamente com esse propósito:
denunciar a farsa de uma sociedade que se acostumou a viver em crise e,
dela, teima em não sair. Um profundo sentimento de autodestruição
inspira a agonia da repetição: de
um lado, o modelo liberal desidratou a vida política, transformando a
vida
em mera categoria econômica. De outro, a esquerda, em especial a
esquerda
marxista, que apresentava com solução, tornou-se um problema. Por quê?
Teima em render-se ao mercado e a não questionar o medo, que são as
premissas básica da ideologia dominante.
Para apresentar simbolicamente o drama, Zizek recorre à frase chave de
abertura do 18 brumário de Luiz Bonaparte em que Marx aborda as
repetições
da história.1 <#_ftn1> Se no 18 brumário, Marx desvenda o
aperfeiçoamento da máquina estatal - que a revolução operária de 1848 se
propunha a destruir, universalizando na prática os ideais de liberdade,
igualdade e fraternidade da Revolução Francesa -, que iria desaguar no
massacre da Comuna de Paris, em 1870, a farsa que Zizek se propõe a
lançar luzes é a
autonomia do sistema financeiro. Um sistema que se torna autônomo e faz
da
irrealidade da especulação o real da economia. O marco da tragédia
atual
foi o 11 de setembro americano, o marco da farsa foi o colapso do
sistema
financeiro mundial em 2008, que provocou a injeção de bilhões de
dólares na sua estabilização, quando o correto seria se investir na
superação da
pobreza, deixando que o sistema afundasse nas suas contradições.
Essa é a primeira visão do livro de Zizek. Uma visão que se desdobra em
teses absolutamente questionáveis, e mesmo condenáveis, como o
fortalecimento do estado, independente do controle público, o elogio ao
comunismo-capitalismo chinês e no exagero (que ele próprio admitiu em
entrevista à revista Cult, de junho) quanto ao número de helicópteros nos
céus de São Paulo. Deixando de lado essas imperfeições, uma segunda
aproximação de Primeiro como tragédia, depois como farsa traz à
tona um tema candente da atualidade: é possível viver num mundo paralelo
ao mundo das crises atuais? Segundo Zizek, é o que os ricos têm feito
em todo o mundo, sobretudo onde as contradições do cotidiano e das
estruturas predadoras se revelam com maior intensidade.
Em termos de comunicação, eis uma leitura vital. Em outros termos, a
pergunta é: existe ou não a possibilidade de uma blindagem? Poderia o
mundo da especulação sobreviver ao mundo real onde suas contradições
explodem no dia a dia? Poderia o indivíduo, uma corporação ou um partido
ser blindado contra as adversidades quando a realidade exige mudanças, e
mudanças profundas? Evidentemente que não. Uma hipótese errada conduz a
demonstrações e resultados errados. Não existe blindagem contra os
imperativos da realidade objetiva. Pode-se tentar assepsiar a vida da
política, dos movimentos de massa, da negação e do aperfeiçoamento da
sociedade civil, pode-se tentar impor a ordem sobre a liberdade pública,
pode-se tentar eliminar os laços de fraternidade entre os homens, tudo
será em vão. Marx, quando denunciou o bonapartismo, almejava restaurar o
movimento de trabalhadores. O século seguinte seria o século do
comunismo. Vitorioso ou não, assimilado ou criticado, tornou-se o
contraponto ao capitalismo da Revolução de 17 à dissolução da União
Soviética na última década do século XX. A realidade é: o neoliberalismo
só se afirmou depois que o comunismo ruiu. Roma ficou sem Cartago. O
capitalismo ficou sem o seu polo de negação. O horizonte da dialética se
volatilizou.
Onde pretende chegar Zizek com Primeiro como tragédia, depois como
farsa?
À reconciliação com a ideia comunista? Ao fracasso da especulação como
farsa? À denúncia do utopismo, como teria sido a Comuna de Paris,
Canudos no Brasil e a Comuna de Xangai? Não fica claro. Há uma máscara
conservadora a encobrir o rosto da crítica, das conexões entre passado e
presente e o novo? Há nas teses de Zizek um lado cintilante, quando ele
aborda a despolitização da economia. Cintilante, mas que não é novo.
Cintilante, mas incompleto. Não traz, por exemplo, a visão das multidões
em movimento, o que Negri, em O Império, faz com vigor e clareza.
Há uma contraparte que se perde nos labirintos do real (aqui entendido
como a coincidência ou não entre a interioridade do indivíduo e o mundo
exterior, entre a superestrutura, melhor dizendo, e a infra-estrutura).
Primeiro,
quando ele exagera realidades como a dos ricos brasileiros. Longe de se
blindarem com helicópteros, vivem a tragédia real dos assaltos, de uma
violência apolítica generalizada e da violência da corrupção, financeira
e
do não cumprimento de plataformas corporativas ou de partidos. São gente
como qualquer outro brasileiro. É uma tragédia real, não uma farsa,
embora
exiba conteúdos de farsa. Em paralelo, é um equívoco brutal definir a
Comuna de Paris como uma explosão utópica momentânea. A história é
outra.
Não foi uma farsa, mas a tragédia. Marx se opôs no princípio, abraçou a
Comuna e escreveu páginas memoráveis sobre sua ascensão e queda.
Foi o primeiro governo operário da história mundial e abriu caminho para
a
Revolução de Outubro e todo o movimento comunista do século passado. Sob
esse aspecto, Zizek faz uma leitura mecânica, não dialética, da Comuna.
Não vê a liberdade como o novo e a ordem vigente como o que fica para
trás. Não vê o utópico ativo, a esperança concreta, como faz Ernst Bloch
no seu O princípio esperança. A análise de Zizek, sob esse
aspecto, é a repetição do mesmo: a condenação do devir pela condenação.
Zizek é um filósofo que aborda temas atuais, mas suas teses não devem
ser absorvidas sem crítica. É como a blindagem. O comunicador que disser
que pode blindar um fato explosivo, está sendo ingênuo ou equivocado,
no mínimo. Isto para não utilizar uma palavra mais forte e radical, esta
como sinônimo de raiz. Como Zizek, o equívoco encontra-se em muitas das
suas teses. Que a ele sejam rendidas as homenagens da crítica, sob pena
da farsa se instaurar primeiro, depois como tragédia.
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