domingo, 18 de novembro de 2012

Antero de Quental

Socialismo e preocupação estética em Antero de Quental
Os sonetos, ímpares em língua portuguesa, são de uma justeza verbal que permite a expansão do tormento existencial sem qualquer excesso, à semelhança do que acontece com a lírica de Camões.
Textos enxutos, plenos, poemas que são verdadeiros monumentos da literatura em qualquer tempo. Apesar de tecnicamente impecáveis, nem por isso os poemas da Antero são frios, duros, muito pelo contrário: dentro deles forças contraditórias buscam lugar e expressão, resultando em contemplação, filosofia, transcendentalidade, dor e metafísica.
        Quatro décadas de pensamento romântico em Portugal (1825-1865) foram decisivamente abaladas, há mais de 120 anos, por alguns moços que ingressaram na Universidade de Coimbra pelos idos de 1860. Entre os que fizeram a virada do reinado do sentimentalismo contemplativo para a literatura de reflexão e de combate estava um jovem poeta, idealista, audacioso, Antero de Quental.
        Esse importante poeta português – a quem alguns colocam no mesmo patamar de Camões e Fernando Pessoa – é praticamente ignorado no Brasil. A rememoração de sua e de sua obra é a qualquer momento oportuna, tanto mais que não é difícil flagrar entre grupos de estudantes universitários quem pergunte: “Mas quem é mesmo esse tal de Antero?”.
        “Um gênio que era um santo”, disse dele Eça de Queirós, mas não cheguemos a tanto. Saibamos que Antero nasceu em Ponta Delgada, nos Açores, em 1842, e aí se suicidou em 1891, com dois tiros de pistola. Do nascimento à morte uma vida de retidão moral e de altitude intelectual que permitiu o surgimento de algumas das mais belas páginas da literatura em língua portuguesa. Isso explica a influência que exerceu no espírito dos moços de seu tempo. No in memoriam que os amigos lhe consagraram, manifestações de admiração ao poeta das Odes Modernas não faltaram – e das mais altas, das mais fundas. Guerra Junqueiro afirmou que nele havia em germe “um santo, um filósofo e um herói”.
        Vida breve a do bardo, apregoador dos novos tempos, e defensor de idéias socialistas e de dignificação da poesia como instrumento para levar à reflexão o povo português. Pertenceu a uma geração esplêndida, numa época das mais ricas em termos de poesia e de efervescência cultural, bafejada pelos ventos do Evolucionismo, do Socialismo e do Positivismo.
        Aos treze anos, o menino Antero, de formação tradicionalista, católica, abandona a ilha dos Açores e viaja para o continente. Ingressa, mais tarde, na Universidade de Coimbra e, circundado pelo vagalhão de novas idéias, recebe de pronto os seus impactos, tornando-se em pouco tempo o líder de toda uma geração.
        E é na condição de anunciador de novos tempos que se atira contra os ideais românticos. E mais ainda, atira-se feroz e implacavelmente contra o velho e cego poeta Antônio Feliciano de Castilho. Castilho, sem conseguir sintonizar com os novos ventos que sopravam, preferia refugiar-se na imitação dos greco-latinos, apegando-se ao formalismo vão. Defendia, portanto, essa forma de escrita, rebarbativa, que impingia à força do Romantismo uma poesia débil, oca, vazia. Tomado da convicção de que era inabalável o panteão dos antigos, Castilho desfiou carta elogiosa ao autor do lânguido “Poema da Mocidade”, Pinheiro Chagas, destacando a superioridade de seu “desleixo de espírito” sobre a “confusão de línguas, o temporal desfeito de safiras, de plásticas, de estéticas, de filosofias e transcendências” dos moços de Coimbra, citando, entre outros nomes, o de Antero de Quental como exemplo de falta de bom senso e de bom gosto.
Antero de Quental “quase desconhecido e, sobretudo desambicioso”, entre outras circunstâncias que pareceriam suficientes para o silenciar, revidou. O que estava sendo colocado em cheque, pela pena de Antero e pelo espírito inconformado dos alunos de Coimbra, era o conservantismo universitário, a assepsia, o mofo das produções românticas então em voga.
Oposição às doutrinas ultrapassadas: com apenas 23 anos de idade, Antero de Quental ateava fogo no conformismo e na monotonia do ultra-romantismo em Portugal, indignava-se, conclamava à verdade e à justiça e dizia que o que ofendia a estas duas damas eram as idéias mesquinhas que estavam por trás dos homens, o mal profundo “que as coisas apenas miseráveis representam”. Rechaçava Castilho. A este debate, que resultou em violentas cartas entre os dois contendores, e que envolveu mais tarde outros escritores – ora a favor de Antero; ora pedindo respeito à figura de Castilho – chamou-se de “Questão Coimbrã” ou “Questão do Bom Senso e do Bom Gosto”. A vitória ficou ao lado dos “revoltosos” liderados por Antero. Poderia ser diferente?
        Depois de formado, Antero retorna às ilhas. Doíam-lhe as suas aspirações sociais, o seu ideário socialista em contraponto com sua condição de proprietário. Viaja então para Paris, onde aprenderá o ofício de tipógrafo. Interessa-lhe entrar em contacto com a classe operária e seu cotidiano, exercer as suas idéias, pô-las em prática. Seis meses depois retorna, frustrado, doente, desiludido. Viaja novamente, dessa vez pela América. Retornando a Portugal, integra associações operárias e publica folhetos de propaganda socialista.
        Era preciso, no entanto, além da troca de farpas com o grupo de Castilho, outras manifestações para solidificar o grupo de Coimbra e seus ideais. Com esse intenso Antero se junta às reuniões do “Cenáculo”, em Lisboa, transformando a tertúlia em espaço para a discussão séria da literatura e dos problemas de Portugal, realizando conferências que pretendem apontar soluções. Dessa forma, iniciam-se em 1871, as “Conferências do Castilho Lisbonense”. Por meio das palestras no Cassino, busca-se acordar Portugal para a consciência de sua época, operando a necessária transformação social, política e moral que a Nação exigia. Mas não havia sectarismo nessa atividade social e cultural de Antero, tal era a sua bondade e lucidez quanto à essência e a natureza do socialismo – que para ele consistia na organização do trabalho em estrita dependência com a envergadura moral dos trabalhadores. “Sua bondade andava inquieta enquanto sua cólera trabalhava”, dirá Eça de Queirós a respeito de Antero.
        Mas sua ação política definitiva estava fadada ao malogro. Antero não conseguia unir a idéia fervilhante à atitude física capaz de concretizá-la plenamente. Era, no fundo, um espírito mais voltado às questões metafísicas, “queria o impossível, o exageradamente perfeito como idéia para ser concretizado como ação”. E o drama anteriano revolvia-se na bruma desse querer sem poder. O poeta, cessada a fúria da juventude e da paixão transformadora, debatia-se interiormente, construindo um texto onde metafísica e transcendentalismo estabeleciam morada.
O socialista desalojara o sentimentalismo em favor de uma poesia compromissada; o deísta profundo, à força das convicções de um apostolado social, dera as mãos ao materialista difuso. Essas forças contraditórias e a doença devassavam o seu íntimo.
        Deus estava perdido como verdade emocional que se consuma pela fé. Restava, pelo intelecto, tentar alcançá-lo na curva do caminho, mas o poeta sabia que isso era impossível e que já não havia como retroceder, voltar às certezas. O suicídio surgiu talvez como alento, como forma de pôr fim ao impasse. Ficou a sua poesia, entranha, filosófica, dramática, única, a emoção cedendo lugar ao pensamento. Mas a razão não foi suficiente para apaziguar o santo Antero.

TORMENTO DO IDEAL
Conheci a Beleza que não morre
E fiquei triste. Como quem da serra
Mais alta que haja, olhando aos pés a terra
E o mar, vê tudo, a maior nau ou torre,
Minguar, fundir-se, sob a luz que jorre;
Assim eu vi o mundo e o que ele encerra
Perder a cor, bem como a nuvem que erra
Ao pôr do sol e sobre o mar discorre.
Pedindo à forma, em vão, a idéia pura,
Tropeço, em sombras, na matéria dura,
E encontro a imperfeição de quanto existe.
Recebi o batismo dos poetas,
E assentado entre as formas incompletas,
Para sempre fiquei pálido e triste.
 
IDEAL
Aquela, que eu adoro, não é feita
De lírios e nem de rosas purpurinas,
Não tem as formas lânguidas, divinas,
Da antiga Vênus de cintura estrita...  
Não é a Circe, cuja mão suspeita
Compõe filtros mortais entre ruínas,
Nem a Amazona, que se agarra às crinas
Dum corcel e combate satisfeita...
A mim mesmo pergunto, e não atino
Com o nome que dê a essa visão,
Que ora amostra ora esconde o meu destino...  
É como uma miragem, que entrevejo,
Ideal, que nasceu na solidão,
Nuvem, sonho impalpável do desejo...

SONETOS
 
“Não é lisonjeando o mau gosto e as péssimas idéias das maiorias, indo atrás delas, tomando por guia a ignorância e a vulgaridade, que se hão de produzir as idéias, as ciências, as crenças, os sentimentos de que a humanidade contemporânea precisa”
Antero de Quental

Conquista pois sozinho o teu futuro,
Já que os celestes guias te hão deixado,
Sobre uma terra ignota abandonado,
Homem – proscrito rei – mendigo escuro!
Se não tens que esperar do Céu (tão puro,
Mas tão cruel!) e o coração magoado
Sentes já de ilusões desenganado;
Ergue-te, então na majestade estóica
Duma vontade solitária e altiva,
Num esforço supremo de alma heróica!
Faze um templo dos muros da cadeia,
Pretendo a imensidade eterna e viva
No círculo de luz da tua Idéia!

O PALÁCIO DA AVENTURA
Sonho que sou um cavaleiro andante.
Por desertos, por sóis, por noite escura.
Paladino do amor, busco anelante
O palácio encantado da Ventura!
Mas já desmaio, exausto e vacilante,
Quebrada a espada já, rota a armadura...
E eis que súbito o avisto fulgurante
Na sua pompa e aérea formosura!
Com grandes golpes bato à porta e brado:
Eu sou o vagabundo, o Deserdado...
Abri-vos, portas d’ouro, ante meus ais!  
Abrem-se as portas d’ouro, com fragor...
Mas dentro encontro só, cheio de dor,
Silêncio e escuridão – e nada mais!

À VIRGEM SANTÍSSIMA
(Cheia de Graça, Mãe de Misericórdia)
Num sonho todo feito de incerteza,
De noturna e indizível ansiedade
É que eu vi teu olhar de piedade
E (mais que piedade) de tristeza...
Não era o vulgar brilho da beleza,
Nem o ardor banal da mocidade...
Era outra luz, era outra suavidade,
Que até nem sei se as há na natureza...
Um místico sofrer... uma ventura
Feita só do perdão, só ternura
E da paz da nossa hora derradeira...
Ó visão, visão triste e piedosa!
Fita-me assim calada, assim chorosa...
E deixa-me sonhar a vida inteira!

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