Segue uma matéria para se refletir da revista Cult escrita como reflexão Marcia Tiburi
Nas grandes cidades, pessoas que não têm
onde morar são contraditoriamente chamadas de “moradores” de rua. É um
eufemismo que acoberta o quadro da injustiça social típica das
sociedades em fase de capitalismo selvagem, aquele no qual a eliminação
do outro é a regra. Que tantos e cada vez mais vivam nas ruas é uma
prova de que o famoso instinto gregário do ser humano se esfacela, ou
assume formas cada vez mais enganadoras porquanto mais voláteis em uma
sociedade que é, ao mesmo tempo, de massas e de indivíduos que não têm a
menor noção do que significa o outro.
O aumento das relações virtuais em
detrimento das relações “atuais” é a própria perversão das massas
marcadas pela anulação física individual em nome de um eu abstrato,
sustentado apenas como imagem, como avatar. E que tem como
correspondente um outro reduzido à sua mera abstração. Há, certamente,
exceções para a regra da distância com que o eu mede o outro.
Dizem as pesquisas que o número de pessoas vivendo sem teto cresceu
nos últimos anos por causa do desemprego. E são milhares. Motivos além
do desemprego podem confundir quanto ao sentido (e o sem sentido) da
complexa experiência vivida por essas pessoas. Afinal, pode-se encontrar
entre os que vivem nas ruas até mesmo quem não se sente em situação de
injustiça social.
A população das ruas das grandes cidades é composta de habitantes (ou
desabitantes) provisórios ou não, que estão ali por motivos diversos.
Muitas vezes são afetivos. Não é raro encontrar ricas histórias de vida
entre as pessoas sem morada, desde aquele que renunciou à vida burguesa
por considerá-la insuportável, até quem por meio de inesperadas leituras
filosóficas criou um significado para o ato de “habitar” a
transitoriedade, ou seja, “desabitar” instransitivamente e estar assim,
na mera existência.
Que não habitar uma casa possa significar uma experiência existencial
é, no entanto, apenas a exceção que confirma a regra da contemporânea
injustiça social a cuja base racional e afetiva tantos entregam as
forças. Renunciar, desistir, jogar a toalha, permitir-se a impotência
como o Bartleby, de Melville, ou o fracasso, como um dia afirmou J. L.
Borges, pode ser o único modo de viver em um mundo marcado pela
melancolia e pelo sem sentido em termos políticos, estéticos e
metafísicos.
O cenário social contemporâneo é o espaço e o tempo dessa
possibilidade de fracasso que diz respeito à potencialidade mais
profunda de nossos tempos. É a forma mais terrível do mal, a da
banalização que se estabelece na vida humana como força lógica. Como um
“deixar acontecer” ao qual damos o nome de “abandono”, esse ato de
exílio, de ostracismo, de curiosa rejeição sem ação. A mendicância das
pessoas é apenas a verdade íntima do capitalismo como mendicância da
própria política deixada a esmo em nome de antipolíticos interesses
pessoais. A mendicância é a imagem social das escolas, dos hospitais
públicos, do salário mínimo…
Democracia de teto e paredes
“Moradores de rua” são a figura mais perfeita do abandono que está no imo da devoração capitalista. Convive-se com eles nos bairros elegantes das cidades grandes como se fossem um estorvo ou, para quem pensa de um modo mais humanitário, como um problema social a ser resolvido filantropicamente. Alguns moram em lugares específicos, têm sua “própria” esquina, carregam objetos de uso aonde quer que vão, outros perambulam a esmo desaparecendo da vista de quem tem onde morar. São meras fantasmagorias aos olhos de quem não é capaz de supor sua alteridade. Esmagados pela contradição de morar onde não mora ninguém, não têm o direito de ser alguém. Partilham o deslugar. E, no entanto, praticam o mesmo que os outros dentro de suas casas: dormem, comem, fazem sexo. A condição humana é o que se divide por paredes ou na ausência delas. A democracia torna-se uma questão de nudez e exposição da vida íntima.
“Moradores de rua” são a figura mais perfeita do abandono que está no imo da devoração capitalista. Convive-se com eles nos bairros elegantes das cidades grandes como se fossem um estorvo ou, para quem pensa de um modo mais humanitário, como um problema social a ser resolvido filantropicamente. Alguns moram em lugares específicos, têm sua “própria” esquina, carregam objetos de uso aonde quer que vão, outros perambulam a esmo desaparecendo da vista de quem tem onde morar. São meras fantasmagorias aos olhos de quem não é capaz de supor sua alteridade. Esmagados pela contradição de morar onde não mora ninguém, não têm o direito de ser alguém. Partilham o deslugar. E, no entanto, praticam o mesmo que os outros dentro de suas casas: dormem, comem, fazem sexo. A condição humana é o que se divide por paredes ou na ausência delas. A democracia torna-se uma questão de nudez e exposição da vida íntima.
Ninguém “mora na rua”; antes, quem está na
rua não mora. Quem está fora dos básicos direitos constitucionais está
excluído da sociedade. E muito mais além da Constituição, está excluído
pelo próprio status com que é medido. O status de “morador de rua” é
apenas um modo de incluir os excluídos na ordem do discurso acobertadora
do fascismo prático de cada dia oculto sob o véu da autista
sensibilidade burguesa. Se o princípio de autoconservação a qualquer
custo é a base da ação de indivíduos unidos na massa, está imediatamente
perdida a dimensão do outro sem a qual não podemos dizer que haja ética
ou política. Mesmo sob o status de morador de rua, o mendigo da nossa
esquina é a prova do fracasso de todos os sistemas. Se as estatísticas
não mudarem comprovando que a tendência da exceção pode ser a regra,
talvez a democracia de teto e paredes não sirva mais a ninguém em breve.
Só que às avessas.
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